sexta-feira, 19 de abril de 2013

O COMEÇO








     Oito ou oitocentos!
     Assim foi minha trajetória como estudante no chamado ensino fundamental.
     Naquela época, esse período era dividido em três fases: primário, admissão ao ginásio e ginasial.
     Neste período escolar, eu nunca consegui manter uma média.  Ou era um excelente aluno, figurando entre os cinco melhores da classe, ou terminava com um desempenho sofrível, culminando com a reprovação.
     Depois de duas reprovações, meu pai perdeu a paciência comigo.  Já que não conseguia deslanchar nos estudos, tive que começar a trabalhar.
     Foi assim, que em 05 de novembro de 1965, cursando novamente a segunda série ginasial no período noturno, iniciei minha vida profissional.
     O meu primeiro trabalho foi no escritório do Sr. Noboru Oshiro, em Lins.  Lá eu desempenhava as funções de escriturário e office-boy simultaneamente. Ou estava escriturando livros de entrada e saída de mercadorias ou estava nas ruas, buscando e levando documentos até as empresas para as quais o escritório prestava serviços.
     Foi ali, no escritório do “Seu Noboru”, que comecei a entender o que era ter responsabilidade e a levar a vida mais a sério.
     Eu era um menino totalmente chucro.  Nunca havia usado um telefone na vida, nunca havia entrado em um banco.  Foi com uma tremenda dificuldade, que consegui me adaptar à nova realidade. A necessidade falou mais alto.  Houve momentos em que tive vontade de desistir, mas, por trás de toda esta situação, estava a figura de meu pai.  Sujeito muito severo, muito correto, que fazia impor a sua vontade.  Desta forma, o meu caráter foi sendo moldado a quatro mãos: do Sr. José Candido, meu pai, e do Sr. Noboru Oshiro, meu patrão.
     Desse período, guardo duas passagens que me marcaram bastante: a primeira delas, foi quando precisei fazer um calculo à mão, pois a calculadora estava ocupada. Sem noção da importância dos documentos de um escritório, rascunhei a minha conta no verso de uma ficha de inscrição estadual de uma empresa cliente nossa.  Seria o mesmo que rascunhar ou fazer uma anotação qualquer no verso de uma certidão de nascimento.  Ridículo mesmo. Nunca esquecerei a expressão do Seu Noboru me reprovando e o sabão que ele me passou.  Foi um sermão de que me recordo até hoje.
    A segunda ocorrência foi pior ainda.  Naquela época, a carteira de identidade (RG) era o documento mais importante para o embarque na aviação comercial, que era apresentada juntamente com o passaporte quando em viagens internacionais.  Pois é.                  Tínhamos uma cliente, proprietária de uma fábrica de molho shoyu em Guaiçara-SP, que viajaria para o Japão no dia seguinte. 
     Estávamos preparando algumas certidões necessárias para a viagem.  Num momento de folga, fiquei brincando com a carteira de identidade dela, dobrando de um lado para o outro. O material era rígido, não era flexível.  De repente, plac! ...a carteira de identidade se quebrou ao meio!
E todos sabemos que nos anos 60, o tempo necessário para a confecção de uma segunda via do documento, era de no mínimo seis meses.  E agora?  Como é que aquela senhora iria embarcar no avião com o documento de identidade dividida em dois pedaços?  Ameacei chorar.  Fiquei em pânico.  Mais uma vez o Seu Noboru entrou em ação. Depois de um discurso de alguns minutos, obrigou-me a embarcar num ônibus, que ía até Guaiçara, levando os documentos para a cliente viajar e contar a ela o que havia acontecido com sua carteira de identidade.  Foi uma das situações mais difíceis de que tenho lembrança.  A expressão de desespero daquela senhora doeu mais do que mil palavras.
     Compreendi a importância de pequenas atitudes e, principalmente de se assumir a responsabilidade sobre cada uma delas.
    Ah! E, a partir de então, aprendi que com documentos não se brinca e que devem ser bem conservados por toda a vida.
     Em 1967, Seu Noboru vendeu o escritório com toda a carteira de clientes, para outro guarda-livros da cidade.  Era assim que eram chamados os contabilistas da época.
     Entra em cena, o Sr. Jonas Prudêncio da Silva, um patrão enérgico, disciplinador e muito correto.  Foi um período muito difícil, pois trabalhávamos sob um regime quase militar.  Tão difícil, que até hoje, muitos anos depois, à vezes sonho que trabalho no escritório Brasil, do Seu Jonas, tão marcado ficou em meu íntimo.
     Simultaneamente ao início do trabalho neste novo escritório, iniciei a segunda fase do período escolar, hoje chamado de ensino médio.  Na época, por total desinformação e falta de um aconselhamento melhor, optei por cursar o Normal, que preparava o profissional para lecionar para alunos da primeira à quarta série.  As outras opções eram o Clássico, que preparava para Letras e o Científico, para as Ciências Exatas.
Desta forma, fui empurrando com a barriga até a conclusão do curso, no final de 1970.
     Então, resolvi chutar o balde, como se diz.  Pedi demissão do emprego, pois não agüentava mais aquele ritmo de trabalho, tão monótono, repetitivo e sem oportunidade de criação.  E havia uma agravante.  Trabalhei de 05 de novembro de 1965 até 20 de fevereiro de 1971, sem registro em carteira, sem 13º salário, sem fundo de garantia ou outro tipo de indenização, sem férias, e com apenas uma falta em todo esse período!!
Conclusão: estava esgotado e sem perspectivas de progresso.
     Fiquei um mês descansando e em seguida, me empreguei na Cia Fotográfica Euclydes, de Lins-SP, trabalhando como cobrador externo.  A empresa atuava em vários estados, então achei que seria uma boa forma de conhecer lugares e ganhando o meu dinheiro ao mesmo tempo e conquistar aquilo que almejava.  Escritório, nunca mais!...e lecionar para crianças? Socorro!!!!. 
O meu plano era dar um tempo e depois retomar os estudos, coisa que nunca aconteceu por vários fatores.  Em 1974, eu até tentei.  Fiz o vestibular para Administração de Empresas, fui aprovado, mas na hora de fazer matrícula faltou dinheiro.  Quando ficou sabendo, o meu pai ficou muito bravo comigo. Ele queria me ajudar, mas o orgulho me impediu de aceitar a sua ajuda.  Eu já estava casado na época.
     Então, voltando à nossa história, trabalhei um ano como cobrador, e neste período conheci vários estados do Brasil. Do Distrito Federal até o Rio Grande do Sul. Após esses doze meses, a empresa resolveu extinguir a equipe de cobradores, pois começou a fazer suas cobranças via banco.  Desta forma os cobradores foram distribuídos por outros setores da empresa. Logicamente que todos foram entrevistados para descobrir as aptidões.  Eu e quatorze funcionários fomos transferidos para o Centro de Treinamento de Fotógrafos, mantido pela empresa.  Foram três meses de treinamento, sendo o primeiro mês de aulas teóricas das 8hs às 18hs.  O segundo e terceiro meses, de aula prática, com simulações de como seria o nosso trabalho no futuro.
A Cia Euclydes era uma empresa que explorava o ramo da fotografia, chegando, no seu auge, a ter quase 800 funcionários.  Eram fotógrafos, relações públicas, entregadores, vendedores, funcionários da administração e laboratório fotográfico.  O trabalho consistia em fotografar crianças de três meses a doze anos, sem compromisso.  As melhores fotos eram expostas no Salão Fotográfico da Criança, promovido pela empresa nas cidades e, posteriormente, o departamento comercial tentava vender álbuns fotográficos às famílias. 
       No início os trabalhos eram em branco e preto; depois, em 1974 vieram as fotos coloridas. A empresa foi pioneira neste tipo de trabalho.  Depois vieram outras e esse tipo de trabalho tornou-se mais comum. As nossas equipes eram bem treinadas e preparadas para o atendimento ao cliente, trajando sempre roupa social, com gravata, etc. Era o nosso diferencial.
     Neste período de treinamento, simulávamos o trabalho de equipe nas ruas da cidade de Lins, onde ficava a sede da empresa.  As famílias que colaboravam conosco, cedendo suas casas e crianças para fotografarmos, eram presenteadas com álbuns fotográficos em tamanho reduzido. 
     Usávamos naquela época, câmaras fotográficas Rolleyflex, com filmes 120 de doze exposições, no tamanho 6x6 cm.  Do primeiro filme que fotografei, foram aproveitadas apenas três poses.  As outras nove poses ficaram muito ruins, contendo todo tipo de erro fotográfico possível.
     Desta forma, o tempo foi passando. E eu, aprendendo.  Depois de 60 dias de aula prática e com 126 filmes batidos, terminei o curso com um aproveitamento médio de 9,7 fotos boas para cada filme de doze poses. Bem razoável!
     Creio que foi ironia do destino, o fato de eu ter conquistado o 1º lugar entre quinze aprendizes da nossa turma.  Tenho total consciência de que o melhor aluno do grupo era um jovem chamado Moacyr Barnet.  Anteriormente ao curso, ele era funcionário interno da empresa e já tinha certa intimidade com os equipamentos utilizados, etc.
     Durante o curso, a média de aproveitamento dele era superior à nossa.  No último lote de fotos que fizemos, o nosso mestre liberou o tema a ser fotografado.  Escolhi fotografar a minha família, namorada etc. O nosso amigo Barnet resolveu fazer fotos noturnas, fotos da lua, que eram fotos muito difíceis de se fazer para quem não tinha muita prática.  Afinal, éramos apenas aprendizes. E ele foi muito infeliz nos resultados, e eu, com fotografias comuns de pessoas, consegui uma média final superior à dele.
     Alguns colegas da turma, tenho que confessar, adoraram o resultado final, pois o Barnet era meio convencido, por ser mais competente do que o resto da turma.
     Vale deixar registrado, a participação de três mestres no nosso curso.  O Sr. Camargo, que nos enriqueceu com conhecimento teórico, o Sr. Euclydes Bredariol  “Cridinho”,  que nos ensinou os primeiros passos, a manipular os equipamentos fotográficos, que nos orientou e nos avaliou e o Sr. Santo Garcia “Santão”, que substituiu o Prof. Euclydes em algumas oportunidades.
     Terminado o curso, estávamos “preparados” para enfrentar a vida dura do trabalho na rua.  A equipe foi dividida em duas. Os seis primeiros colocados em aproveitamento, foram escalados para trabalhar em Porto Alegre, onde a empresa acabara de instalar um departamento de produção.  Os outros nove elementos foram trabalhar na cidade do Rio de Janeiro, onde as outras equipes da empresa atuavam na época.


COMEÇO TUMULTUADO

Chegamos em Porto Alegre, no início de junho de 1972.  No dia seguinte à nossa chegada, abraçamos o nosso primeiro dia de trabalho.
A nossa equipe era composta por oito fotógrafos, oito relações públicas, também chamados de contatos, supervisor de equipe, supervisor de qualidade (acompanhava cada dia um fotógrafo) e motoristas. Éramos transportados em duas kombis.
Trabalhávamos em dupla: um contato e um fotógrafo.  O supervisor distribuía as duplas pela rua de um setor da cidade (Porto Alegre era dividida em 54 setores) e lá iam elas.  Ao trabalho!
         O trabalho do contato era visitar casa a casa, descobrindo onde viviam crianças, convidando os pais a fotografarem seus filhos para uma exposição fotográfica que seria realizada na cidade.  Um trabalho sem compromisso e não se falava em comercializar fotografias ou qualquer outro produto. Depois de convencida a mãe passava ao contato informações pessoais da família e agendava um horário para as crianças serem fotografadas.  A ficha com todos os dados era passada ao fotógrafo que, no horário marcado, apresentava-se na residência para fotografar os pimpolhos, que naquele momento já estariam prontos, bem trocadinhos e perfumados.
        O trabalho do fotógrafo era fazer um mínimo de 18 fotos, um filme e meio (de doze poses), e um máximo de 36 fotos, quando se tratava de família de muitas posses, que residiam, muitas das vezes, em verdadeiras mansões.  Naquele tempo, os ricos também abriam as portas das suas casas para nos atender, e participar do Salão da Criança.
Como curiosidade, cabia ao fotógrafo analisar o potencial de compra do cliente, analisando a qualidade da residência, dos móveis, dos trajes das crianças e as profissões dos pais que estavam informadas nas fichas.
Quando o fotógrafo se deparava com crianças mal arrumadas, sofás rasgados, sem condições de fazer boas fotografias, fazia de conta que fotografava, disparando flashes apenas, se despedia e ia embora.  Aquela ficha estava cancelada.  Cruel, mas era assim que funcionava.
O contato ganhava comissões por ficha fotografada e o fotografo ganhava salário fixo.  Às vezes, a dupla tão unida entrava em atrito, pelo fato do fotógrafo cancelar uma ficha por um motivo qualquer. Esses motivos poderiam ir desde uma residência sem condições para fotografar, até uma criança que não deixava tirar fotos. Era terrível.  Tínhamos meia hora para trabalhar em cada residência.  Muitas vezes passávamos o tempo todo tentando e não conseguíamos tirar uma foto sequer.  Lembrando que o nosso mínimo eram 18 fotos.  Eram dezoito ou nada feito.
Quando isso acontecia, o contato ficava uma fera.  Então, o supervisor destacava um outro fotógrafo, em horário diferente, para fazer uma nova tentativa.  Mesmo assim, muitas vezes o outro fotógrafo também não conseguia fotografar a criança. Isso ocorria com mais frequência com crianças na faixa dos dois anos.  Não era fácil.  Quando eu pegava uma ficha com criança nesta idade, chegava a arrepiar.Já entrava na residência meio derrotado.
Tivemos um colega fotógrafo chamado Miquelino, que tinha um método infalível... com ele não tinha criança difícil.  Ele pegava a criança no colo, rolava com ela pelo tapete, escondia atrás da cortina, fazia os diabos.  Fotografava todas.  Para ele, não havia criança problemática.  Detalhe:  só tinha um Miquelino na empresa.
     Mas, vamos ao meu primeiro dia de trabalho.
     Depois de umas duas horas de espera nas esquinas, o contato trouxe-me a primeira ficha para fotografar.  Adivinhe!  Uma linda criancinha de olhos azuis, com dois aninhos de idade.  Imaginou?  Fiquei mais de uma hora dentro da casa, fazendo todas as tentativas possíveis.  Nada.  Não consegui.  A criança não me deixou fazer uma foto sequer.
     Saí dali muito frustrado.  Quando dei a notícia para o contato, ele me consolou:
     -  É assim mesmo.  Não desanime.  Tome aqui outra ficha.  A mãe já está esperando com a criança.  Esta você consegue, tem apenas oito meses.
     Oito meses é uma idade maravilhosa para fotografar.  O bebê já está durinho, fica sentado, fica de pé segurando nos móveis, não estranha a gente, sorri fácil.  Só é complicado quando está com fome ou sono.
     Lá vou eu para a minha segunda tentativa.  A dona da casa me recebeu muito bem.  Montei os equipamentos e comecei o meu primeiro trabalho.  Rapidinho, tirei seis fotografias do bebê, todas no sofá, mas com poses diferentes.  Então, pedi à mãe do bebê, que trocasse a roupinha dele para não ficar muito repetitivo.  Ela me pediu licença e se dirigiu ao quarto para trocar a criança.  Eu, com toda a discrição possível, fiquei de pé na sala, aguardando.  A porta de casa era daqueles modelos que tem uma janelinha no meio.  A casa era de madeira, muito bonita, no estilo das casas de bairros de cidades gaúchas.
     De repente, a janelinha da porta se abriu.  Pude ver a mão e o rosto de um senhor loiro.  Ele enfiou a mão pela janelinha e alcançou o trinco da porta.  Cumprimentou-me apenas com um aceno de cabeça e perguntou, com a cara amarrada, o que eu fazia ali na sala da casa dele.
     Passei a explicar como funcionava nossa promoção e que a esposa dele havia autorizado a nossa presença na residência para fotografar a criança.  E que ela estava no quarto trocando a roupinha do bebê.
     O sujeito não me disse nada, e se encaminhou para o quarto.  Depois de alguns minutos de silencio, surgiram pela porta do quarto, o “alemão” com cara de poucos amigos, a esposa em lágrimas, com a criança vestida pela metade.  Uma perninha dentro e outra fora do macacãozinho.
    O sujeito passou por mim, foi até a porta e abriu, me dizendo:
    - Olha aqui, tchê!.  Quando eu quiser fotos do meu filho, levo num “foto” e mando fazer.  Não preciso que ninguém venha até a minha casa com este pretexto.  Por favor, retire-se da minha casa, pois não te autorizei a vir aqui!
     Amarelei e pensei:  hoje vou apanhar.  Com câmara pendurada no pescoço e flash no ombro, fui pegando a minha maleta que estava no canto da sala e fui saindo, tentando ainda convencer aquele senhor de que era vantajoso tirar as fotos com a nossa empresa.
     Acabando de passar pela porta , escutei a pancada forte da porta batendo às minhas costas e o deslocamento de ar...  Para mim, estava tudo acabado.
     Quando olhei para a rua, vi a Kombi da empresa estacionada me esperando para irmos almoçar.  Conversando com os meus supervisores, pedi para ir embora para casa, pois não queria continuar com aquele trabalho.  Com bastante conversa e persuasão, eles convenceram-me a ficar.
     Depois do almoço, o trabalho continuou, consegui fotografar algumas residências e, aos poucos, fui adquirindo a confiança necessária.


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