Oito ou oitocentos!
Assim foi minha trajetória como estudante
no chamado ensino fundamental.
Naquela época, esse período era dividido
em três fases: primário, admissão ao ginásio e ginasial.
Neste período escolar, eu nunca consegui
manter uma média. Ou era um excelente
aluno, figurando entre os cinco melhores da classe, ou terminava com um
desempenho sofrível, culminando com a reprovação.
Depois de duas reprovações, meu pai perdeu
a paciência comigo. Já que não conseguia
deslanchar nos estudos, tive que começar a trabalhar.
Foi assim, que em 05 de novembro de 1965,
cursando novamente a segunda série ginasial no período noturno, iniciei minha
vida profissional.
O meu primeiro trabalho foi no escritório
do Sr. Noboru Oshiro, em
Lins. Lá eu
desempenhava as funções de escriturário e office-boy simultaneamente. Ou estava
escriturando livros de entrada e saída de mercadorias ou estava nas ruas,
buscando e levando documentos até as empresas para as quais o escritório
prestava serviços.
Foi ali, no escritório do “Seu Noboru”,
que comecei a entender o que era ter responsabilidade e a levar a vida mais a
sério.
Eu era um menino totalmente chucro. Nunca havia usado um telefone na vida, nunca
havia entrado em um banco. Foi com uma
tremenda dificuldade, que consegui me adaptar à nova realidade. A necessidade
falou mais alto. Houve momentos em que
tive vontade de desistir, mas, por trás de toda esta situação, estava a figura
de meu pai. Sujeito muito severo, muito
correto, que fazia impor a sua vontade.
Desta forma, o meu caráter foi sendo moldado a quatro mãos: do Sr. José
Candido, meu pai, e do Sr. Noboru Oshiro, meu patrão.
Desse período, guardo duas passagens que
me marcaram bastante: a primeira delas, foi quando precisei fazer um calculo à
mão, pois a calculadora estava ocupada. Sem noção da importância dos documentos
de um escritório, rascunhei a minha conta no verso de uma ficha de inscrição
estadual de uma empresa cliente nossa.
Seria o mesmo que rascunhar ou fazer uma anotação qualquer no verso de
uma certidão de nascimento. Ridículo
mesmo. Nunca esquecerei a expressão do Seu Noboru me reprovando e o sabão que
ele me passou. Foi um sermão de que me
recordo até hoje.
A segunda ocorrência foi pior ainda. Naquela época, a carteira de identidade (RG)
era o documento mais importante para o embarque na aviação comercial, que era
apresentada juntamente com o passaporte quando em viagens internacionais. Pois é. Tínhamos uma cliente,
proprietária de uma fábrica de molho shoyu em Guaiçara-SP, que viajaria para o
Japão no dia seguinte.
Estávamos preparando algumas certidões
necessárias para a viagem. Num momento
de folga, fiquei brincando com a carteira de identidade dela, dobrando de um lado
para o outro. O material era rígido, não era flexível. De repente, plac! ...a carteira de identidade
se quebrou ao meio!
E
todos sabemos que nos anos 60, o tempo necessário para a confecção de uma
segunda via do documento, era de no mínimo seis meses. E agora?
Como é que aquela senhora iria embarcar no avião com o documento de
identidade dividida em dois pedaços?
Ameacei chorar. Fiquei em pânico. Mais uma vez o Seu Noboru
entrou em ação. Depois
de um discurso de alguns minutos, obrigou-me a embarcar num ônibus, que ía até
Guaiçara, levando os documentos para a cliente viajar e contar a ela o que
havia acontecido com sua carteira de identidade. Foi uma das situações mais difíceis de que
tenho lembrança. A expressão de
desespero daquela senhora doeu mais do que mil palavras.
Compreendi a importância de pequenas
atitudes e, principalmente de se assumir a responsabilidade sobre cada uma
delas.
Ah! E, a partir de então, aprendi que com
documentos não se brinca e que devem ser bem conservados por toda a vida.
Em 1967, Seu Noboru vendeu o escritório
com toda a carteira de clientes, para outro guarda-livros da cidade. Era assim que eram chamados os contabilistas
da época.
Entra em cena, o Sr. Jonas Prudêncio da
Silva, um patrão enérgico, disciplinador e muito correto. Foi um período muito difícil, pois
trabalhávamos sob um regime quase militar.
Tão difícil, que até hoje, muitos anos depois, à vezes sonho que
trabalho no escritório Brasil, do Seu Jonas, tão marcado ficou em meu íntimo.
Simultaneamente ao início do trabalho
neste novo escritório, iniciei a segunda fase do período escolar, hoje chamado
de ensino médio. Na época, por total
desinformação e falta de um aconselhamento melhor, optei por cursar o Normal,
que preparava o profissional para lecionar para alunos da primeira à quarta
série. As outras opções eram o Clássico,
que preparava para Letras e o Científico, para as Ciências Exatas.
Desta
forma, fui empurrando com a barriga até a conclusão do curso, no final de 1970.
Então,
resolvi chutar o balde, como se diz.
Pedi demissão do emprego, pois não agüentava mais aquele ritmo de
trabalho, tão monótono, repetitivo e sem oportunidade de criação. E havia uma agravante. Trabalhei de 05 de novembro de 1965 até 20 de
fevereiro de 1971, sem registro em carteira, sem 13º salário, sem fundo de
garantia ou outro tipo de indenização, sem férias, e com apenas uma falta em
todo esse período!!
Conclusão:
estava esgotado e sem perspectivas de progresso.
Fiquei um mês descansando e em seguida, me
empreguei na Cia Fotográfica Euclydes, de Lins-SP, trabalhando como cobrador
externo. A empresa atuava em vários
estados, então achei que seria uma boa forma de conhecer lugares e ganhando o
meu dinheiro ao mesmo tempo e conquistar aquilo que almejava. Escritório, nunca mais!...e lecionar para
crianças? Socorro!!!!.
O
meu plano era dar um tempo e depois retomar os estudos, coisa que nunca
aconteceu por vários fatores. Em 1974,
eu até tentei. Fiz o vestibular para
Administração de Empresas, fui aprovado, mas na hora de fazer matrícula faltou
dinheiro. Quando ficou sabendo, o meu
pai ficou muito bravo comigo. Ele queria me ajudar, mas o orgulho me impediu de
aceitar a sua ajuda. Eu já estava casado
na época.
Então, voltando à nossa história, trabalhei
um ano como cobrador, e neste período conheci vários estados do Brasil. Do
Distrito Federal até o Rio Grande do Sul. Após esses doze meses, a empresa
resolveu extinguir a equipe de cobradores, pois começou a fazer suas cobranças
via banco. Desta forma os cobradores
foram distribuídos por outros setores da empresa. Logicamente que todos foram
entrevistados para descobrir as aptidões.
Eu e quatorze funcionários fomos transferidos para o Centro de
Treinamento de Fotógrafos, mantido pela empresa. Foram três meses de treinamento, sendo o
primeiro mês de aulas teóricas das 8hs às 18hs.
O segundo e terceiro meses, de aula prática, com simulações de como
seria o nosso trabalho no futuro.
A
Cia Euclydes era uma empresa que explorava o ramo da fotografia, chegando, no
seu auge, a ter quase 800 funcionários.
Eram fotógrafos, relações públicas, entregadores, vendedores,
funcionários da administração e laboratório fotográfico. O trabalho consistia em fotografar crianças
de três meses a doze anos, sem compromisso.
As melhores fotos eram expostas no Salão Fotográfico da Criança,
promovido pela empresa nas cidades e, posteriormente, o departamento comercial
tentava vender álbuns fotográficos às famílias.
No início os trabalhos eram em branco e
preto; depois, em 1974 vieram as fotos coloridas. A empresa foi pioneira neste
tipo de trabalho. Depois vieram outras e
esse tipo de trabalho tornou-se mais comum. As nossas equipes eram bem
treinadas e preparadas para o atendimento ao cliente, trajando sempre roupa
social, com gravata, etc. Era o nosso diferencial.
Neste período de treinamento, simulávamos
o trabalho de equipe nas ruas da cidade de Lins, onde ficava a sede da
empresa. As famílias que colaboravam
conosco, cedendo suas casas e crianças para fotografarmos, eram presenteadas
com álbuns fotográficos em tamanho reduzido.
Usávamos naquela época, câmaras
fotográficas Rolleyflex, com filmes 120 de doze exposições, no tamanho 6x6
cm. Do primeiro filme que fotografei,
foram aproveitadas apenas três poses. As
outras nove poses ficaram muito ruins, contendo todo tipo de erro fotográfico
possível.
Desta forma, o tempo foi passando. E eu,
aprendendo. Depois de 60 dias de aula
prática e com 126 filmes batidos, terminei o curso com um aproveitamento médio
de 9,7 fotos boas para cada filme de doze poses. Bem razoável!
Creio que foi ironia do destino, o fato de
eu ter conquistado o 1º lugar entre quinze aprendizes da nossa turma. Tenho total consciência de que o melhor aluno
do grupo era um jovem chamado Moacyr Barnet.
Anteriormente ao curso, ele era funcionário interno da empresa e já
tinha certa intimidade com os equipamentos utilizados, etc.
Durante o curso, a média de aproveitamento
dele era superior à nossa. No último
lote de fotos que fizemos, o nosso mestre liberou o tema a ser
fotografado. Escolhi fotografar a minha
família, namorada etc. O nosso amigo Barnet resolveu fazer fotos noturnas,
fotos da lua, que eram fotos muito difíceis de se fazer para quem não tinha
muita prática. Afinal, éramos apenas
aprendizes. E ele foi muito infeliz nos resultados, e eu, com fotografias
comuns de pessoas, consegui uma média final superior à dele.
Alguns colegas da turma, tenho que
confessar, adoraram o resultado final, pois o Barnet era meio convencido, por
ser mais competente do que o resto da turma.
Vale deixar registrado, a participação de
três mestres no nosso curso. O Sr.
Camargo, que nos enriqueceu com conhecimento teórico, o Sr. Euclydes Bredariol “Cridinho”, que nos ensinou os primeiros passos, a
manipular os equipamentos fotográficos, que nos orientou e nos avaliou e o Sr.
Santo Garcia “Santão”, que substituiu o Prof. Euclydes em algumas
oportunidades.
Terminado o curso, estávamos “preparados”
para enfrentar a vida dura do trabalho na rua.
A equipe foi dividida em duas. Os seis primeiros colocados em
aproveitamento, foram escalados para trabalhar em Porto Alegre , onde a
empresa acabara de instalar um departamento de produção. Os outros nove elementos foram trabalhar na
cidade do Rio de Janeiro, onde as outras equipes da empresa atuavam na época.
COMEÇO
TUMULTUADO
Chegamos
em Porto Alegre ,
no início de junho de 1972. No dia
seguinte à nossa chegada, abraçamos o nosso primeiro dia de trabalho.
A
nossa equipe era composta por oito fotógrafos, oito relações públicas, também
chamados de contatos, supervisor de equipe, supervisor de qualidade
(acompanhava cada dia um fotógrafo) e motoristas. Éramos transportados em duas
kombis.
Trabalhávamos
em dupla: um contato e um fotógrafo. O
supervisor distribuía as duplas pela rua de um setor da cidade (Porto Alegre
era dividida em 54 setores) e lá iam elas.
Ao trabalho!
O trabalho do contato era visitar casa
a casa, descobrindo onde viviam crianças, convidando os pais a fotografarem
seus filhos para uma exposição fotográfica que seria realizada na cidade. Um trabalho sem compromisso e não se falava
em comercializar fotografias ou qualquer outro produto. Depois de convencida a
mãe passava ao contato informações pessoais da família e agendava um horário
para as crianças serem fotografadas. A
ficha com todos os dados era passada ao fotógrafo que, no horário marcado,
apresentava-se na residência para fotografar os pimpolhos, que naquele momento
já estariam prontos, bem trocadinhos e perfumados.
O trabalho do fotógrafo era fazer um
mínimo de 18 fotos, um filme e meio (de doze poses), e um máximo de 36 fotos,
quando se tratava de família de muitas posses, que residiam, muitas das vezes, em
verdadeiras mansões. Naquele tempo, os
ricos também abriam as portas das suas casas para nos atender, e participar do
Salão da Criança.
Como
curiosidade, cabia ao fotógrafo analisar o potencial de compra do cliente,
analisando a qualidade da residência, dos móveis, dos trajes das crianças e as
profissões dos pais que estavam informadas nas fichas.
Quando
o fotógrafo se deparava com crianças mal arrumadas, sofás rasgados, sem
condições de fazer boas fotografias, fazia de conta que fotografava, disparando
flashes apenas, se despedia e ia embora.
Aquela ficha estava cancelada.
Cruel, mas era assim que funcionava.
O
contato ganhava comissões por ficha fotografada e o fotografo ganhava salário fixo. Às vezes, a dupla tão unida entrava em
atrito, pelo fato do fotógrafo cancelar uma ficha por um motivo qualquer. Esses
motivos poderiam ir desde uma residência sem condições para fotografar, até uma
criança que não deixava tirar fotos. Era terrível. Tínhamos meia hora para trabalhar em cada
residência. Muitas vezes passávamos o
tempo todo tentando e não conseguíamos tirar uma foto sequer. Lembrando que o nosso mínimo eram 18
fotos. Eram dezoito ou nada feito.
Quando
isso acontecia, o contato ficava uma fera.
Então, o supervisor destacava um outro fotógrafo, em horário diferente,
para fazer uma nova tentativa. Mesmo
assim, muitas vezes o outro fotógrafo também não conseguia fotografar a
criança. Isso ocorria com mais frequência com crianças na faixa dos dois
anos. Não era fácil. Quando eu pegava uma ficha com criança nesta
idade, chegava a arrepiar.Já entrava na residência meio derrotado.
Tivemos
um colega fotógrafo chamado Miquelino, que tinha um método infalível... com ele
não tinha criança difícil. Ele pegava a criança
no colo, rolava com ela pelo tapete, escondia atrás da cortina, fazia os
diabos. Fotografava todas. Para ele, não havia criança
problemática. Detalhe: só tinha um Miquelino na empresa.
Mas, vamos ao meu primeiro dia de
trabalho.
Depois de umas duas horas de espera nas
esquinas, o contato trouxe-me a primeira ficha para fotografar. Adivinhe!
Uma linda criancinha de olhos azuis, com dois aninhos de idade. Imaginou?
Fiquei mais de uma hora dentro da casa, fazendo todas as tentativas
possíveis. Nada. Não consegui.
A criança não me deixou fazer uma foto sequer.
Saí dali muito frustrado. Quando dei a notícia para o contato, ele me
consolou:
- É
assim mesmo. Não desanime. Tome aqui outra ficha. A mãe já está esperando com a criança. Esta você consegue, tem apenas oito meses.
Oito
meses é uma idade maravilhosa para fotografar.
O bebê já está durinho, fica sentado, fica de pé segurando nos móveis,
não estranha a gente, sorri fácil. Só é
complicado quando está com fome ou sono.
Lá vou eu para a minha segunda tentativa. A dona da casa me recebeu muito bem. Montei os equipamentos e comecei o meu
primeiro trabalho. Rapidinho, tirei seis
fotografias do bebê, todas no sofá, mas com poses diferentes. Então, pedi à mãe do bebê, que trocasse a
roupinha dele para não ficar muito repetitivo.
Ela me pediu licença e se dirigiu ao quarto para trocar a criança. Eu, com toda a discrição possível, fiquei de
pé na sala, aguardando. A porta de casa
era daqueles modelos que tem uma janelinha no meio. A casa era de madeira, muito bonita, no
estilo das casas de bairros de cidades gaúchas.
De repente, a janelinha da porta se
abriu. Pude ver a mão e o rosto de um
senhor loiro. Ele enfiou a mão pela
janelinha e alcançou o trinco da porta. Cumprimentou-me
apenas com um aceno de cabeça e perguntou, com a cara amarrada, o que eu fazia
ali na sala da casa dele.
Passei a explicar como funcionava nossa
promoção e que a esposa dele havia autorizado a nossa presença na residência
para fotografar a criança. E que ela
estava no quarto trocando a roupinha do bebê.
O sujeito não me disse nada, e se
encaminhou para o quarto. Depois de
alguns minutos de silencio, surgiram pela porta do quarto, o “alemão” com cara
de poucos amigos, a esposa em lágrimas, com a criança vestida pela metade. Uma perninha dentro e outra fora do
macacãozinho.
O sujeito passou por mim, foi até a porta e
abriu, me dizendo:
- Olha aqui, tchê!. Quando eu quiser fotos do meu filho, levo num
“foto” e mando fazer. Não preciso que
ninguém venha até a minha casa com este pretexto. Por favor, retire-se da minha casa, pois não
te autorizei a vir aqui!
Amarelei e pensei: hoje vou apanhar. Com câmara pendurada no pescoço e flash no
ombro, fui pegando a minha maleta que estava no canto da sala e fui saindo,
tentando ainda convencer aquele senhor de que era vantajoso tirar as fotos com
a nossa empresa.
Acabando de passar pela porta , escutei a pancada forte da porta batendo
às minhas costas e o deslocamento de ar...
Para mim, estava tudo acabado.
Quando olhei para a rua, vi a Kombi da
empresa estacionada me esperando para irmos almoçar. Conversando com os meus supervisores, pedi
para ir embora para casa, pois não queria continuar com aquele trabalho. Com bastante conversa e persuasão, eles convenceram-me
a ficar.
Depois do almoço, o trabalho continuou,
consegui fotografar algumas residências e, aos poucos, fui adquirindo a
confiança necessária.
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