sexta-feira, 19 de abril de 2013

PASSEI A NOITE OUVINDO BEATLES




Às vezes, penso que sou pé-frio. Certas coisas só acontecem comigo.  Eu sei que isso soa exagerado, mas é assim que eu sinto.
Depois que terminarem de ler esta história, vocês dirão se tenho ou não razão para me sentir meio azarado.
Antes de iniciar, gostaria de dizer me considero um sujeito muito precavido.  Antes de qualquer atitude, analiso os prós e os contras, para tentar tomar as decisões corretas.  Mesmo assim, por vezes, não é o suficiente para evitar certos dissabores. 
Na época, atuava como gerente de loja.  Toda vez que me ausentava, fazia questão de informar os funcionários para onde eu ia, quanto tempo ia demorar, etc. Isto porque os meus superiores poderiam me telefonar e eu sempre gostava de dar satisfação a eles, informando que havia precisado sair a serviço da empresa ou para resolver algum problema pessoal.
A história que vou contar aconteceu na empresa Jet Color em São José do Rio Preto, local onde trabalhei por longos anos.
Já passava das duas horas da madrugada, quando fui acordado com a campainha da minha casa tocando insistentemente.  A principio, imaginei que algum parente havia morrido.  Quando abri a porta, quase morri de susto! Dei de cara com a viatura da polícia na porta da minha casa.  Depois de informado do acontecido, pedi um tempo aos policiais, prometendo que em alguns minutos estaria no local. Despedi-me deles e voltei para dentro de casa, a fim de me vestir adequadamente para sair à rua.  Naquele momento, estava apenas de cuecas e camiseta.
Enquanto vestia uma roupa, fiquei imaginando o que poderia ter acontecido.
Tirei o carro da garagem e fui para a loja a mil por hora...



A loja localizava-se na esquina das ruas Bernardino de Campos e Jorge Tibiriçá.  Nessa esquina de quatro pontas tínhamos, além da Jet Color, as lojas Riachuelo de um lado, a Praça Rui Barbosa do outro e, no lado oposto, o Coffee Shop.  Este último era um bar e café, durante o dia, e choperia com petiscos, no período noturno.  Na ocasião, era o ponto de encontro dos negociantes de rua da cidade.  Ali, concentravam-se os corretores e negociantes autônomos, comercializando casas, terrenos, sítios, fazendas, chácaras, etc.. Era conhecida como “esquina do pecado”. Se procurássemos bem, encontraríamos até folhas de cheque em branco para comprar.  À noite, os proprietários do estabelecimento espalhavam mesas e cadeiras pela calçada, transformando o local em ponto de encontro dos freqüentadores do centro da cidade, após do horário de expediente do comércio, o já conhecido Happy Hour.
Todas as noites, generosas porções de petiscos e dúzias de copos de chope eram servidos aos clientes com muita presteza pelo garçom Ceará.
A alguns quarteirões de distância, localizava-se o salão do cabeleireiro Athayde, profissional de primeira, com uma vasta clientela.  Para conseguir um horário na agenda dele, era necessário marcar com alguns dias de antecedência.  Principalmente no meu caso, que só tinha tempo disponível para contar os cabelos, depois das dezoito horas.
Nossa loja tinha uma fachada muito grande, possuindo seis portas na sua frente.  Todas as portas eram fechadas por dentro da loja, pois tínhamos uma saída pelos fundos do prédio, um edifício comercial com oito andares.
Naquele dia, chegando o momento do encerramento do expediente, perto das dezoito horas, os funcionários encarregados iniciaram o procedimento de fechamento das portas, com a loja praticamente vazia e sem clientes.  Nesse momento, adentrou o recinto o nosso amigo Dílson, policial militar que atuava como fotógrafo nas horas de folga.  Cumprimentei nosso cliente, passei as últimas orientações aos funcionários, pois estava saindo mais cedo para cortar os cabelos.  Desejando uma boa noite a todos, saí na maior pressa, pois já estava em cima do horário marcado com o Athayde Cabeleireiro.
Os funcionários continuaram a rotina de trancar as portas e deixaram por último, uma portinha que era a menor dentre as seis portas da loja.  Esta portinha era sempre a última a ser fechada.  Só era trancada quando o último cliente deixava o estabelecimento.
Fiquei sabendo depois, que o Dílson foi atendido até às dezoito horas e vinte minutos,  mais ou menos.  Ele mesmo levantou a porta, saiu e, do lado de fora, abaixou a porta novamente. 
Ocorre que o pessoal que havia ficado para atender o último cliente devia estar com muita pressa de ir embora.  Vendo que a porta estava abaixada, não foram checar se estava devidamente trancada com as chaves. Um deixou pro outro e o outro deixou pro um.   Apagaram as luzes e saíram pela porta dos fundos...
Quando terminei de cortar os cabelos, já passava das dezenove horas.  Do salão do Athayde, fui embora direto pra casa, pois naquele momento não haveria mais ninguém na loja e eu não tinha necessidade de voltar lá, já que havia orientado os funcionários quanto ao fechamento e encerramento dos trabalhos.
Por volta das vinte horas, Sérgio, um dos proprietários do Coffee Shopp percebeu, à distância, que a porta menor da nossa loja estava aberta em mais ou menos uns setenta centímetros.  Como não tinha sido trancada, as molas começaram a “puxar” a porta pra cima. Eram portas de ferro, daquelas de enrolar. O Serginho percebeu também que, além da porta estar aberta, a loja estava às escuras. Ficou intrigado e atento, para ver se entrava ou saía algum funcionário de lá.
Cerca de uma hora e meia mais tarde, ele viu que a porta estava mais aberta ainda e não tinha movimentação de pessoas na loja. À medida que o tempo passava, aumentava a abertura da porta.
Passava da meia noite e aquela porta da loja estava toda aberta, escancarada com as luzes apagadas. Ninguém entrava nem saía da loja.  Neste momento, o Serginho já discutia com o seu irmão Vicente, sobre qual decisão a ser tomada, pois em pouco tempo eles deveriam fechar o bar e não queriam deixar a nossa loja aberta daquele jeito, pois tinham certeza de que alguma coisa estranha estava acontecendo.  Apesar da nossa amizade como vizinhos de comércio, não tínhamos a intimidade ao ponto de saber os endereços uns dos outros.
Pois bem. Uma hora da madrugada, os clientes foram embora e resolveram fechar o bar.  Não restava outra alternativa, a não ser chamar a polícia.
Chegaram os policiais em duas viaturas.  Munidos de forte armamento e lanternas para iluminar, entraram na loja, até encontrar a caixa com os disjuntores da iluminação da loja.
Pronto.  A loja está acesa.  Ali dentro, os policiais, os dois proprietários do Coffee Shop e os últimos clientes do bar.  Representantes da loja?  Nenhum!!!  Ninguém!!!
Os policiais começaram a manusear pastas de documentos no armário do escritório e encontraram farta correspondência com endereço da matriz da empresa em Tupã.  Eram notas fiscais, memorandos, cartas e outros documentos.  Assim sendo, os policiais resolveram ligar para Tupã e tentar descobrir o endereço do responsável pela loja em Rio Preto, para avisar que a porta se encontrava aberta, escancarada.
Foi neste momento, que o Serginho e o Vicentinho intercederam e impediram que os policiais fizessem aquilo, ou seja, telefonar para a matriz.  Eles tinham certeza que eu não tinha conhecimento daquilo e que numa situação normal, isso nunca iria acontecer.  Alguma coisa estranha havia acontecido, era a certeza deles. Se os policiais telefonassem para a matriz comunicando o fato, certamente toda a culpa iria cair sobre os meus ombros, que naquele momento dormia tranquilamente na minha cama.
Então, fuçando nas gavetas da minha escrivaninha, os policiais encontraram uma agenda telefônica. Na página da letra “F”, encontraram telefones de vários profissionais ligados à fotografia, moradores na cidade, e que deviam me conhecer.
Vários deles foram contatados.  Todos me conheciam, mas ninguém sabia onde eu morava. 
Neste momento, entra um personagem novo na nossa história. O Sr. Ivo Pirani era um fotógrafo muito conhecido e querido na cidade.  Era o fotógrafo oficial do América F.C. de São José do Rio Preto. Sujeito muito querido por todos do ramo da fotografia. Exímio cozinheiro e gourmet também.  Como gostava de comer, o meu amigo Ivo!  Por isso era bem gordinho e aproveitava o seu físico para se fantasiar de Papai Noel, em toda época de Natal.
Como Papai Noel, ele prestava serviço para algumas empresas, principalmente às Lojas Riachuelo e também entregava brinquedos na noite de Natal nos lares onde havia criancinhas inocentes.  Era contratado pelos pais, mediante um módico cachê.
Minha filha Mariana, na época com uns seis anos de idade, era uma das crianças premiadas com a visita do Papai Noel Ivo todas as noites de Natal.
Voltando à nossa história, por incrível que pareça, o Ivo foi o último fotógrafo da agenda a ser contatado pelos policiais.  Por sorte minha, ele confirmou que me conhecia e passou para os PMS o endereço de minha residência.

***



Chegando lá, me deparei com uma cena de filme policial.  Tinha umas quatro viaturas da Policia Militar, todas com giroflex ligado.  Aquele monte de gente na porta da loja, naquela hora da madrugada.  Eram curiosos que passavam por ali e, vendo o movimento, pararam para ver o que tinha acontecido.  Policiais, então!... nem sei quantos estavam ali naquele momento, mas eram muitos.
Fui chegando e me identificando. O policial chefe da tropa convidou-me a entrar na loja e foi me crivando de perguntas... Tudo ao mesmo tempo.  Eu estava meio tonto, havia sido acordado na base do susto. De repente, via-me ali, dentro da loja, de madrugada e acompanhado de um monte de policiais, querendo saber se estava faltando alguma coisa da loja, se eu sentia a falta de algum objeto.  Na hora, respondi que não, porque não dava pra ter uma idéia do que realmente estava acontecendo.  Parecia um sonho, ou melhor, um pesadelo. Dei uma vistoriada geral na loja e percebi que, aparentemente, estava tudo no lugar. Não notei a falta de nada que fosse importante naquele momento.  Comentei com o oficial, que iria fazer uma conferência de estoque nos dias seguintes, para saber se alguma coisa fora levada da loja.
E expliquei a eles que não tinha idéia do que estava acontecendo, pois no dia anterior havia saído da loja antes do seu fechamento. Precisava conversar com o pessoal encarregado de trancar as portas, para descobrir o verdadeiro responsável pelo ocorrido. Diante daquela situação, pedi também para não ser elaborado boletim de ocorrência, pois não sentia a necessidade do procedimento.
Depois de agradecer aos policiais e, principalmente, aos meus amigos do Coffee Shop, tranquei a loja de verdade, despedi-me de todos e voltei para casa.
A adrenalina era tanta, que não consegui relaxar de jeito nenhum. Não conseguia dormir, nem mesmo tomando um tranqüilizante.
Naqueles dias eu havia comprado alguns LPs dos Beatles, pois a coleção toda fora lançada com som remasterizado.  Não tive dúvidas. Conectei o fone de ouvido no meu aparelho de som, para não atrapalhar aqueles que queriam dormir e ouvi Beatles até o dia clarear.
Seis horas da manhã, já estava embaixo do chuveiro e antes das sete, já estava na loja, ansioso pela chegada dos funcionários. Às oito horas, com a presença de todos, iniciamos uma reunião para tentarmos identificar os autores da façanha.  Até hoje, não consegui descobrir quem foi o verdadeiro responsável. 
Um vai protegendo o outro e assim por diante. Sendo assim, todos ouviram o que precisavam ouvir. Até mesmo os inocentes, aqueles sobre quem não havia nenhuma desconfiança, ouviram o sermão de praxe.
Infelizmente, as coisas são assim mesmo.  As pessoas são pagas para executar tarefas, mas nem todos fazem por merecer o que ganham.  Naquele dia, a loja foi aberta às 9 e meia da manhã.
Sorte minha, que os meus amigos Serginho e Vicentinho impediram os policiais de entrarem em contato com a minha empresa, senão eu estaria frito. 
No final, quem ganhou um grande susto e perdeu uma noite de sono, fui eu.
Perdi?
Perdi, nada. Curti os Beatles, que são minha paixão até hoje.
Let it be...let it be!





Se voce gosta de Beatles como eu, acesse o endereço abaixo, e veja ao vivo, imagens da famosa "faixa de pedestres" da Abbey Road.

http://www.abbeyroad.com/crossing




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