Às vezes, penso que sou pé-frio. Certas coisas só
acontecem comigo. Eu sei que isso soa exagerado,
mas é assim que eu sinto.
Depois que terminarem de ler esta história, vocês dirão
se tenho ou não razão para me sentir meio azarado.
Antes de iniciar, gostaria de dizer me considero um
sujeito muito precavido. Antes de
qualquer atitude, analiso os prós e os contras, para tentar tomar as decisões
corretas. Mesmo assim, por vezes, não é
o suficiente para evitar certos dissabores.
Na época, atuava como gerente de loja. Toda vez que me ausentava, fazia questão de informar
os funcionários para onde eu ia, quanto tempo ia demorar, etc. Isto porque os
meus superiores poderiam me telefonar e eu sempre gostava de dar satisfação a
eles, informando que havia precisado sair a serviço da empresa ou para resolver
algum problema pessoal.
A história que vou contar aconteceu na empresa Jet
Color em São José do Rio Preto, local onde trabalhei por longos anos.
Já passava das duas horas da madrugada, quando fui
acordado com a campainha da minha casa tocando insistentemente. A principio, imaginei que algum parente havia
morrido. Quando abri a porta, quase
morri de susto! Dei de cara com a viatura da polícia na porta da minha
casa. Depois de informado do acontecido,
pedi um tempo aos policiais, prometendo que em alguns minutos estaria no local.
Despedi-me deles e voltei para dentro de casa, a fim de me vestir adequadamente
para sair à rua. Naquele momento, estava
apenas de cuecas e camiseta.
Enquanto vestia uma roupa, fiquei imaginando o que
poderia ter acontecido.
Tirei o carro da garagem e fui para a loja a mil por
hora...
A loja localizava-se na esquina das ruas Bernardino
de Campos e Jorge Tibiriçá. Nessa
esquina de quatro pontas tínhamos, além da Jet Color, as lojas Riachuelo de um
lado, a Praça Rui Barbosa do outro e, no lado oposto, o Coffee Shop. Este último era um bar e café, durante o dia,
e choperia com petiscos, no período noturno.
Na ocasião, era o ponto de encontro dos negociantes de rua da
cidade. Ali, concentravam-se os
corretores e negociantes autônomos, comercializando casas, terrenos, sítios,
fazendas, chácaras, etc.. Era conhecida como “esquina do pecado”. Se
procurássemos bem, encontraríamos até folhas de cheque em branco para comprar. À noite, os proprietários do estabelecimento
espalhavam mesas e cadeiras pela calçada, transformando o local em ponto de
encontro dos freqüentadores do centro da cidade, após do horário de expediente
do comércio, o já conhecido Happy Hour.
Todas as noites, generosas porções de petiscos e
dúzias de copos de chope eram servidos aos clientes com muita presteza pelo
garçom Ceará.
A alguns quarteirões de distância, localizava-se o
salão do cabeleireiro Athayde, profissional de primeira, com uma vasta clientela. Para conseguir um horário na agenda dele, era
necessário marcar com alguns dias de antecedência. Principalmente no meu caso, que só tinha
tempo disponível para contar os cabelos, depois das dezoito horas.
Nossa loja tinha uma fachada muito grande, possuindo
seis portas na sua frente. Todas as
portas eram fechadas por dentro da loja, pois tínhamos uma saída pelos fundos
do prédio, um edifício comercial com oito andares.
Naquele dia, chegando o momento do encerramento do
expediente, perto das dezoito horas, os funcionários encarregados iniciaram o
procedimento de fechamento das portas, com a loja praticamente vazia e sem
clientes. Nesse momento, adentrou o
recinto o nosso amigo Dílson, policial militar que atuava como fotógrafo nas
horas de folga. Cumprimentei nosso
cliente, passei as últimas orientações aos funcionários, pois estava saindo
mais cedo para cortar os cabelos. Desejando
uma boa noite a todos, saí na maior pressa, pois já estava em cima do horário
marcado com o Athayde Cabeleireiro.
Os funcionários continuaram a rotina de trancar as
portas e deixaram por último, uma portinha que era a menor dentre as seis
portas da loja. Esta portinha era sempre
a última a ser fechada. Só era trancada
quando o último cliente deixava o estabelecimento.
Fiquei sabendo depois, que o Dílson foi atendido até às
dezoito horas e vinte minutos, mais ou
menos. Ele mesmo levantou a porta, saiu e,
do lado de fora, abaixou a porta novamente.
Ocorre que o pessoal que havia ficado para atender o
último cliente devia estar com muita pressa de ir embora. Vendo que a porta estava abaixada, não foram
checar se estava devidamente trancada com as chaves. Um deixou pro outro e o
outro deixou pro um. Apagaram as luzes e saíram pela porta dos
fundos...
Quando terminei de cortar os cabelos, já passava das dezenove
horas. Do salão do Athayde, fui embora
direto pra casa, pois naquele momento não haveria mais ninguém na loja e eu não
tinha necessidade de voltar lá, já que havia orientado os funcionários quanto
ao fechamento e encerramento dos trabalhos.
Por volta das vinte horas, Sérgio, um dos
proprietários do Coffee Shopp percebeu, à distância, que a porta menor da nossa
loja estava aberta em mais ou menos uns setenta centímetros. Como não tinha sido trancada, as molas
começaram a “puxar” a porta pra cima. Eram portas de ferro, daquelas de
enrolar. O Serginho percebeu também que, além da porta estar aberta, a loja
estava às escuras. Ficou intrigado e atento, para ver se entrava ou saía algum
funcionário de lá.
Cerca de uma hora e meia mais tarde, ele viu que a
porta estava mais aberta ainda e não tinha movimentação de pessoas na loja. À
medida que o tempo passava, aumentava a abertura da porta.
Passava da meia noite e aquela porta da loja estava
toda aberta, escancarada com as luzes apagadas. Ninguém entrava nem saía da
loja. Neste momento, o Serginho já
discutia com o seu irmão Vicente, sobre qual decisão a ser tomada, pois em
pouco tempo eles deveriam fechar o bar e não queriam deixar a nossa loja aberta
daquele jeito, pois tinham certeza de que alguma coisa estranha estava
acontecendo. Apesar da nossa amizade
como vizinhos de comércio, não tínhamos a intimidade ao ponto de saber os
endereços uns dos outros.
Pois bem. Uma hora da madrugada, os clientes foram
embora e resolveram fechar o bar. Não
restava outra alternativa, a não ser chamar a polícia.
Chegaram os policiais em duas viaturas. Munidos de forte armamento e lanternas para
iluminar, entraram na loja, até encontrar a caixa com os disjuntores da
iluminação da loja.
Pronto. A loja
está acesa. Ali dentro, os policiais, os
dois proprietários do Coffee Shop e os últimos clientes do bar. Representantes da loja? Nenhum!!!
Ninguém!!!
Os policiais começaram a manusear pastas de
documentos no armário do escritório e encontraram farta correspondência com
endereço da matriz da empresa em Tupã.
Eram notas fiscais, memorandos, cartas e outros documentos. Assim sendo, os policiais resolveram ligar para
Tupã e tentar descobrir o endereço do responsável pela loja em Rio Preto, para
avisar que a porta se encontrava aberta, escancarada.
Foi neste momento, que o Serginho e o Vicentinho
intercederam e impediram que os policiais fizessem aquilo, ou seja, telefonar
para a matriz. Eles tinham certeza que
eu não tinha conhecimento daquilo e que numa situação normal, isso nunca iria
acontecer. Alguma coisa estranha havia
acontecido, era a certeza deles. Se os policiais telefonassem para a matriz
comunicando o fato, certamente toda a culpa iria cair sobre os meus ombros, que
naquele momento dormia tranquilamente na minha cama.
Então, fuçando nas gavetas da minha escrivaninha, os
policiais encontraram uma agenda telefônica. Na página da letra “F”,
encontraram telefones de vários profissionais ligados à fotografia, moradores
na cidade, e que deviam me conhecer.
Vários deles foram contatados. Todos me conheciam, mas ninguém sabia onde eu
morava.
Neste momento, entra um personagem novo na nossa
história. O Sr. Ivo Pirani era um fotógrafo muito conhecido e querido na
cidade. Era o fotógrafo oficial do América
F.C. de São José do Rio Preto. Sujeito muito querido por todos do ramo da
fotografia. Exímio cozinheiro e gourmet também.
Como gostava de comer, o meu amigo Ivo!
Por isso era bem gordinho e aproveitava o seu físico para se fantasiar
de Papai Noel, em toda época de Natal.
Como Papai Noel, ele prestava serviço para algumas
empresas, principalmente às Lojas Riachuelo e também entregava brinquedos na
noite de Natal nos lares onde havia criancinhas inocentes. Era contratado pelos pais, mediante um módico
cachê.
Minha filha Mariana, na época com uns seis anos de
idade, era uma das crianças premiadas com a visita do Papai Noel Ivo todas as
noites de Natal.
Voltando à nossa história, por incrível que pareça, o
Ivo foi o último fotógrafo da agenda a ser contatado pelos policiais. Por sorte minha, ele confirmou que me
conhecia e passou para os PMS o endereço de minha residência.
***
Chegando lá, me deparei com uma cena de filme
policial. Tinha umas quatro viaturas da
Policia Militar, todas com giroflex ligado.
Aquele monte de gente na porta da loja, naquela hora da madrugada. Eram curiosos que passavam por ali e, vendo o
movimento, pararam para ver o que tinha acontecido. Policiais, então!... nem sei quantos estavam
ali naquele momento, mas eram muitos.
Fui chegando e me identificando. O policial chefe da
tropa convidou-me a entrar na loja e foi me crivando de perguntas... Tudo ao
mesmo tempo. Eu estava meio tonto, havia
sido acordado na base do susto. De repente, via-me ali, dentro da loja, de
madrugada e acompanhado de um monte de policiais, querendo saber se estava
faltando alguma coisa da loja, se eu sentia a falta de algum objeto. Na hora, respondi que não, porque não dava
pra ter uma idéia do que realmente estava acontecendo. Parecia um sonho, ou melhor, um pesadelo. Dei
uma vistoriada geral na loja e percebi que, aparentemente, estava tudo no
lugar. Não notei a falta de nada que fosse importante naquele momento. Comentei com o oficial, que iria fazer uma
conferência de estoque nos dias seguintes, para saber se alguma coisa fora
levada da loja.
E expliquei a eles que não tinha idéia do que estava
acontecendo, pois no dia anterior havia saído da loja antes do seu fechamento.
Precisava conversar com o pessoal encarregado de trancar as portas, para
descobrir o verdadeiro responsável pelo ocorrido. Diante daquela situação, pedi
também para não ser elaborado boletim de ocorrência, pois não sentia a
necessidade do procedimento.
Depois de agradecer aos policiais e, principalmente,
aos meus amigos do Coffee Shop, tranquei a loja de verdade, despedi-me de todos
e voltei para casa.
A adrenalina era tanta, que não consegui relaxar de
jeito nenhum. Não conseguia dormir, nem mesmo tomando um tranqüilizante.
Naqueles
dias eu havia comprado alguns LPs dos Beatles, pois a coleção toda fora lançada
com som remasterizado. Não tive dúvidas.
Conectei o fone de ouvido no meu aparelho de som, para não atrapalhar aqueles
que queriam dormir e ouvi Beatles até o dia clarear.
Seis horas da manhã, já estava embaixo do chuveiro e
antes das sete, já estava na loja, ansioso pela chegada dos funcionários. Às
oito horas, com a presença de todos, iniciamos uma reunião para tentarmos
identificar os autores da façanha. Até
hoje, não consegui descobrir quem foi o verdadeiro responsável.
Um vai protegendo o outro e assim por diante. Sendo
assim, todos ouviram o que precisavam ouvir. Até mesmo os inocentes, aqueles
sobre quem não havia nenhuma desconfiança, ouviram o sermão de praxe.
Infelizmente, as coisas são assim mesmo. As pessoas são pagas para executar tarefas,
mas nem todos fazem por merecer o que ganham.
Naquele dia, a loja foi aberta às 9 e meia da manhã.
Sorte minha, que os meus amigos Serginho e Vicentinho
impediram os policiais de entrarem em contato com a minha empresa, senão eu
estaria frito.
No final, quem ganhou um grande susto e perdeu uma
noite de sono, fui eu.
Perdi?
Perdi, nada. Curti os Beatles, que são minha paixão
até hoje.
Let it be...let it
be!
Se voce gosta de Beatles como eu, acesse o endereço abaixo, e veja ao vivo, imagens da famosa "faixa de pedestres" da Abbey Road.
http://www.abbeyroad.com/crossing
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